“DÁ TCHAU PRA DOUTORA, FILHO!”

“DÁ TCHAU PRA DOUTORA, FILHO!”

Era pra ser só uma consulta de uma criança gripada. Heitor, com 2 anos e 8 meses, ainda não falava. A mãe, preocupada com a tosse e eu observando seu comportamento. Enquanto ela me contava se o filho teve febre, se tossia de dia, de noite, se parou de comer, ele corria de um lado para o outro do consultório. Ela falava com ele, tentava contê-lo, tudo em vão. Ele só repetia “Babababá”…

“Bá é água. Ele quer água.”

“Ótimo, eu pego pra ele. Quais palavras ele fala?”

“Ainda não fala. Eu que fico decifrando o que ele quer.”

“Hummm, entendo. Quando você chama, ele te responde? Ele olha pra você quando você fala o nome dele?”

“Olha. Olha, sim. Quer ver? Heitor! Heitor!”

“E ele seguiu como se a mãe não o tivesse chamado.”

Deitei Heitor na maca com carinho para examiná-lo. A mãe me ajudava. Ele ficou tranquilo apesar de manter a agitação do corpo. Chorou um pouco antes de deixar examinar a garganta mas não disse uma palavra. Só balbuciava sons incompreensíveis. Tentei buscar seu olhar para interagir com ele. Sem sucesso.

“O teste da orelhinha do Heitor estava normal quando ele nasceu?”

“Sim.”

“E o Heitor gosta de brincar.”

“Gosta.”

E do quê ele gosta de brincar?”

“De carrinho. Ele adora. Ele tem um tanto.”

“Você já reparou como ele brinca com os carrinhos?”

“Ele gosta mais de brincar sozinho. Ele passa horas a enfileirar todos assim em linha. Acho que é por que ele vê no estacionamento, né… Ele enfilera todos. E ainda separa por cor.”

Minha cabeça já tinha desenhado o resultado daquela conversa. Heitor era muito provavelmente uma criança autista. A mãe, talvez ainda em negação, não conseguia ver com estranheza tantos sintomas.

Era nosso primeiro encontro e eu não pretendia dar uma notícia como esta a ela de qualquer forma, numa consulta para resolver uma gripe. Perguntei tentando provocar alguma reflexão sobre o comportamento do filho:

“Seu primeiro filho falou com que idade?”

“Antes de 1 ano.”

“Você nota que o desenvolvimento da linguagem dos dois está diferente?”

“Um pouco…”

Fiz alguns encaminhamentos e tentei explicar sem ir direto ao ponto. Sua negação era, para mim, um sinal de que ela não estava pronta para este diagnóstico naquele momento.

“Quero que você busque alguns especialistas. Leve estes relatórios. Eles vão nos ajudar a fechar este diagnóstico. Só sabendo o que está causando este atraso pra gente poder começar a estimulá-lo da forma correta pra ele se desenvolver com toda a potencialidade dele.”

“Eu fico um pouco aflita, tento incentivá-lo a falar mas não adianta. Por mais que eu repita, ele não fala.”

“Não fique angustiada. Vamos primeiro definir o que está acontecendo pra depois, com tranquilidade, fazer o que for preciso fazer.”

Nos despedimos e ela sorriu da porta.

“Dá tchau pra doutora, filho!”

Ele virou a palma da mão para si e acenou. Acenou como se desse um tchauzinho para ele mesmo. Um sinal clássico! Eu não poderia deixá-la ir embora sem ao menos explicar o que eu estava vendo. Chamei-a de volta e pedi para que fechasse a porta.

“Desculpe te atrasar. Você reparou como ele deu tchau pra mim?”

“Ele só dá tchau assim.”

“Tenho uma suspeita para o diagnóstico dele.”

“Ela desviou o olhar.”

“Todos esses sinais são sinais do transtorno do espectro autista.”

“Sério?!”

“Sério. É muito importante que a gente chegue a uma definição deste diagnóstico para começar o acompanhamento correto pra ele.”

Ela ficou em silêncio.

“Imagino que você esteja assustada com a notícia.”

“Uma fonoaudióloga já tinha me falado mas eu não queria acreditar.”

“Eu te entendo. Há muita informação incorreta sobre esta condição. Eu só peço pra que você siga nesse caminho rumo ao diagnóstico e ao acompanhamento adequado. Imagino que você esteja num turbilhão de sentimentos, mas se eu puder te pedir uma coisa…não se desespere. Busque apoio da sua família, busque apoio profissional. De jeito nenhum esse diagnóstico é o fim do mundo. A gente só vai precisar redirecionar o acompanhamento dele, mas vamos fazer isso juntas.”

Ela respirou fundo:

“Eu estava preparada para jogar esses encaminhamentos no fundo da gaveta. Na verdade, eu sabia que alguma coisa estava estranha, só não queria enxergar.”

Nos abraçamos e ela foi embora.

Era um recomeço.

Texto: Júlia Rocha

Talvez você goste dos conteúdos abaixo também

Seja o primeiro a comentar esta postagem.

Escreva seu comentário abaixo

Gostaria de receber mais informações sobre Autismo?

Cadastre o seu e-mail abaixo e receba meus materiais e notícias gratuitamente.

Digite o seu nome completo.
Digite aqui o seu E-mail.